Vamos lá entender … !?
Tenho sido questionado sobre a razão de terem terminado a nível do SNS as cirurgias de mudança de sexo que eram feitas por mim no CHLN/Hospital Santa Maria, em Lisboa.
Decidi por isso dar uma explicação.
Após 41 anos de descontos e 65 de idade reformei-me. Fiquei com UMA SÓ reforma calculada a partir dos descontos que fiz nesses 41 anos.
Outros, coitados, como acontece com algumas pessoas importantes em Portugal, que toda a gente conhece, devem ter descontado 80 ou mesmo 120 anos para ter direito a DUAS ou TRÊS reformas.
Tenho recebido assim todos os meses a minha reforma na minha conta Bancária desde que me reformei em 24/06/2009 mas que agora foi reduzida para 1831,87 (já tirada a retenção na fonte etc.) para, voluntariamente obrigado, contribuir para pagar o "buraco" dos Bancos, as segundas e terceiras reformas milionárias de alguns importantes, as mordomias dos Políticos, etc., etc., tão necessárias ao País como todos sabem.
Após ficar reformado, o Hospital Santa Maria propôs-me um contrato de 15 horas semanais só para assistência a pessoas com Disforia de Género, por não haver mais ninguém no SNS para prosseguir com esses tratamentos cirúrgicos. Pagava-me 35 € hora (brutos, isto é antes de descontar o IRS).
Era-me de facto proposto um valor/hora semelhante ao que paguei ao canalizador que veio arranjar uma torneira cá a casa. Esse contrato só podia ser feito através de uma Empresa, ao que entendi, por não me poderem contratar diretamente.
Aceitei esta proposta para não deixar toda a “minha gente”, os e as Transexuais, sem os tratamentos cirúrgicos a que tinham direito no SNS e porque tinha esperança de mais tarde ou mais cedo aparecer seguidor.
De facto havia um Interno do Serviço de Cirurgia Plástica do H. S. Maria com interesse em prosseguir com esta cirurgia. Contudo só estaria em condições de o fazer dai a 2 ou 3 anos se pudesse trabalhar comigo. De facto ainda lhe faltam cerca de 2 anos para terminar o Internato da Especialidade, estando assim obrigado à realização do currículo cirúrgico estabelecido para obtenção da Especialidade. Só depois de ser Especialista, isto é, dai a dois anos, é que poderia dedicar-se em especial às cirurgias de reatribuição sexual, e portanto com mais alguns meses de experiência substituir-me. Isto se pudesse trabalhar comigo.
Entretanto o Governo fez uma lei que impossibilitava os reformados de serem contratados por Entidades Publicas, para prestar serviços ao Estado, mesmo através de uma Empresa Privada.
Contudo ouvi a própria Ministra da Saúde de então, a Dra. Ana Jorge, dizer na TV que os médicos reformados que forem muito necessários podem ser contratados com autorização especial da Ministra e com o ordenado base que tinham antes de ser reformados … só que a Senhora Ministra “esqueceu-se” de dizer que havia uma outra lei já antiga que condiciona também esses contratos.
O contrato que propõem a estes médicos, reformados mas que fazem falta no SNS, é o que me propuseram a mim.
Propuseram-me um horário de 35 horas semanais pagando-me 1/3 da reforma ou 1/3 do ordenado conforme eu quisesse, isto é, no meu caso, 6 € / hora brutos (antes de descontar o IRS).
Por 10 horas de Bloco de Oratório ( umas 4 ou 5 cirurgias ) receberia 60 € ou seja ganhava mais ou menos 40 € depois de descontar o IRS.
Achei ofensivo uma "oferta" destas. Ainda por cima como o Hospital e o Serviço de cirurgia Plástica não tinha possibilidade de me facultar 35 horas semanais para tratar só pessoas com Disforia de Género / Transexualidade, certamente que este contrato pressupunha eu fazer todas as outras cirurgias, que como é óbvio não estava interessado em fazer, e para a realização das quais eu não fazia a mínima falta falta.
De facto não era eu que estava a pedir ao SNS que fizesse a esmola de me aceitar para continuar a trabalhar. Paradoxalmente era o SNS que pedia a minha colaboração por ter necessidade do meu saber, experiência e trabalho, mas ao mesmo tempo impunha condições de horário que esse mesmo SNS não tinha capacidade de me disponibilizar para o fim em vista e oferecia contrapartidas monetárias que qualquer pessoa minimamente na posse das suas faculdades psíquicas teria vergonha de propor.
Expliquei a situação e a proposta que o CHLN/H. Santa Maria me fez a várias pessoas, não fosse eu estar errado. A reação foi unânime: uma sonora gargalhada e a frase « - eu pago mais à minha Mulher a Dias …!!!»
Aconteceu-me numa consulta num Hospital Privado um episódio que não esqueço.
Entrou no gabinete de consulta um Senhor que ao entrar me disse com ar divertido: « Dr. eu venho para ser operado por si mas tem de me prometer que não me vai operar a 6€/hora senão vou já embora » e começãmos os dois a rir.
Não pude por motivos óbvios aceitar esta proposta. Não estava em posição de descer tão baixo. Não me parece que qualquer Licenciado e ainda por cima no topo da sua carreira profissional permita ser assim tão achincalhado. Há limites que a própria honra impõe.
Assim desde o dia 01/01/2011 que interrompi a minha atividade remunerada no HSM.
Ainda trabalhei e operei no mês de Janeiro, de forma voluntária e 100% grátis, para resolver alguns casos mais inadiáveis. No mês de Fevereiro fui vários dias ao Hospital fazer pensos e colaborar em algumas intervenções, etc., também voluntariamente sem ganhar um cêntimo.
No fim de Fevereiro parei de facto a minha atividade normal no HSM. Fui ainda, e continuei a ir colaborar no tratamento de casos pontuais e/ou urgentes em cumprimento das minhas responsabilidades deontológicas como médico (e também”por amor à camisola” ) e por gostar de transmitir algum “saber de experiência feito” aos mais novos. Assim fui algumas vezes também colaborar com a Equipa do Dr. Alexandre Lourenço do Serviço de Ginecologia do HSM em cirurgias de reconstruções vaginais em casos de malformações congénitas (agenesias vaginais), em deformações genitais graves pós partos e ainda sempre que foi possível marcarem lá na Ginecologia histerectomias de Transsexuais.
Fui ainda colaborar algumas vezes em cirurgias de reconstrução palpebral no serviço de Oftalmologia. Todas estas colaborações sem receber um cêntimo!.
Sei que com esta minha atitude praticamente terminavam nessa altura estas cirurgias a nível do SNS Português.
Tenho pena de ter deixado tanta gente numa situação eventualmente desesperada, mas não podia ter tomado outra atitude.
Com a Lei 7/2011 de 15 de Março concretizou-se finalmente um dos anseios de todos os Transexuais, a possibilidade de mudar o nome e o sexo nos seus documentos, mas não o que também sempre mais desejavam desde criança: adaptar o seu corpo ao seu género, ao “sexo do seu cérebro.
Houve de facto um Hospital Privado que se disponibilizou para que eu tratasse lá todas as pessoas já com o diagnostico concretizado de Disforia de Género / Transexualidade e também já com o necessário aval da Ordem dos Médicos para iniciarem o tratamentos cirúrgicos. Esse Hospital foi o Hospital de Jesus, da Venerável Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco, a Jesus.
Algumas destas pessoas têm ADSE ou outros sub-sistemas semelhantes. No H. de Jesus já operei e posso continuar a operar Transexuais com direito à ADSE, ADM, PSP-SAD e semelhantes que usão a tabela da ADSE, através do acordo desse Hospital com a ADSE e etc. mas para os outros do SNS ainda não há solução. O Hospital de Jejus ainda se esforçou para resolver o problema mas esbarrou com uma atitude inconcebivel do Ministério da Saude que pode ver AQUI
Se tivesse havido um qualquer acordo entre o H. Jesus e o SNS seria ótimo para todos os Transexuais na fase cirúrgica do tratamento. De facto não havendo as limitações de tempo de Bloco Operatório que eu tinha no CHLN/H.S.M poderiam num só ano ser operados o nº de pessoas que estava previsto demorar mais de 2 ou 3 anos no CHLN/H.S.M. Teria sido uma solução excelente para todos os Transexuais. Teria sido também uma boa solução para resolver o futuro pois o colega que estava a acabar o Internato da Especialidade poderia colaborar comigo fora do seu horário Hospitalar e assim preparar-se para me substituir. Seria também melhor para as Finanças Publicas pois haveria menos tempos de Baixa Médica ou/e de Subsídios. Estas pessoas ao regressar mais cedo ao trabalho estariam a contribuir para aumentar o PIB Nacional. As despesas diretas que isso acarretaria para o SNS seria o mesmo ou menor do que já era gasto nos Hospitais Públicos.
Era assim uma solução boa para todos.
É claro que eu poderia operar estas pessoas em regime inteiramente privado em vários Hospitais Privados e com isso obter grandes proventos monetários mas não ponho qualquer questão em operá-los ao abrigo de um qualquer acordo, com contrapartidas monetárias incomparavelmente menores, mas com o prazer insubstituível de ver a felicidade daqueles e aquelas quando se veem e sentem finalmente “realizados/as“.
É esta a realidade. Neste Portugal uma pessoa pode receber duas ou mais reformas por inteiro, mesmo que não tenha feito descontos que o justifiquem, se quiser ficar a gozar as reformas sem trabalhar.
Receber uma reforma, a que tem direito pelos descontos que fez durante 41 anos, e um ordenado por trabalhar para além da reforma por o País ter necessidade do seu trabalho e lhe pedir que trabalhe mais uns anos, isso é que é “pecado”.
Em Portugal, quem podendo nada fazer por estar reformado, se dispõe a trabalha quando lhe é pedido pelos Serviços Públicos, é um malandro que tem de ser castigar e ofendido a todo o custo pelo Estado, mesmo que para isso seja necessário prejudicar gravemente os Direitos Humanos de terceiros.
Vamos lá entender estas coisas … e este Portugal … e estes Políticos!?
João Décio Ferreira